sábado, 4 de julho de 2015

O leão e o rato


 Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão emvolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:

– Nem um boi. Nem ao menos um paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de uma futura refeição.

Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. “A amizade resistiria à fome?” – pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo (?) faminto.

Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em circulos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:

– Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para O Leão, a parte do Leão.

A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:

– Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no litígio com os súditos.

Você é um verdadeiro e egrégio merítissimo! Não vai se arrenpender!

E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos do queijo, E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:

– Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!

MORAL : Os ratos são iguaizinhos aos homens.
Millôr Fernandes

A extinção da mulher sapiens

mulheres sapiens
Dilma chegou lá. Conseguiu enfim bater a popularidade de Collor na época do impeachment. Alcançou um dígito de aprovação (9%), segundo o Ibope, e 68% de rejeição. A façanha se deu logo após a confissão de Ricardo Pessoa, o homem-bomba das empreiteiras. Ele confirmou que financiou a campanha de Dilma em 2014 com dinheiro roubado da Petrobras. É o flagrante definitivo do nacionalismo companheiro. O que faz uma mulher sapiens diante de tal obscenidade?

Faz o de sempre: joga areia nos olhos da plateia, como diagnosticou Fernando Gabeira. Mas a tática de embaralhar e confundir, quando utilizada por uma pessoa embaralhada e confusa, produz um resultado esquisito. “Não confio em delator”, rebateu Dilma, atirando no mensageiro. A presidente explicou que a ditadura tentou fazê-la delatar seus companheiros, e ela não aceitou. Até Joaquim Barbosa surgiu de seu exílio para dizer que Dilma feriu o instituto da delação premiada com esse paralelo estapafúrdio. Mas Joaquim não entende nada da lógica companheira.


Lula da Silva já justificou massacres impostos pelo seu amigo ditador do Irã como “briga normal entre flamenguistas e vascaínos”. Agora ele admitiu que Dilma mentiu na eleição, conforme revelou o GLOBO, ao dizer que ajuste fiscal era coisa do seu adversário. Mas durante a campanha, quando o adversário denunciava as mentiras de Dilma — o ajuste de Armínio Fraga ia esvaziar o prato do povo —, a infantaria petista gritava que era agressão contra a mulher. Mulher sapiens, vítima da ditadura, coitada profissional. Haja areia.


A Operação Lava-Jato, que não deixa em paz esse governo sofrido e discriminado, prendeu donos de empreiteiras. Entre eles o presidente da Odebrecht, cujo lobista levou Lula para passear pelo mundo. As prisões foram feitas sob a teoria de domínio do fato, isto é, autoria indireta dos crimes. Ricardo Pessoa, Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef já inundaram o processo do petrolão com evidências de que o esquema prosperou à sombra do Palácio do Planalto. Pela teoria de domínio do fato, Lula e Dilma estariam no centro das investigações. Procura-se um homo sapiens capaz de fazer isso acontecer.



Aí vem o Tribunal de Contas da União mandar a presidente justificar as pedaladas fiscais. Só pode ser uma conspiração da direita. Como a orgia nas contas públicas não é justificável, a plateia aguarda com a respiração presa o próximo truque para livrar Dilma do crime de responsabilidade. Cuidado com os olhos, porque lá vem areia. Já mandaram o ex-secretário do Tesouro dizer que a culpa foi dele — mais um aloprado desses que fazem o diabo por conta própria e não obedecem a ninguém. Como não há estoque de álibis que chegue para tanta fraude, o governo do PT está por um fio.

E quem segura esse fio é um elenco admirável. Há jornalistas importantes (com e sem mesada), intelectuais respeitáveis, expoentes da cultura. Eles formam a tropa de choque da Dilma — mais ou menos como aquela liderada por Roberto Jefferson na via crúcis de Collor. Esses bem-pensantes não se importam com o estelionato petista, que em nome da justiça social depenou o país, porque estão com os olhos enfiados na Bíblia. Luiz Inácio é seu pastor e nada lhe faltará (se cortejares o partido certo). Se vires milhões nas ruas contra a impostura do PT, enxergarás apenas a faixa pedindo intervenção militar — e gritarás contra a “onda conservadora”. Caminhando e cantando e seguindo o cifrão.

Evidentemente chegará o dia em que esses dogmas de 1,99 vão se esfarelar, e a mulher sapiens irá para o museu de história natural. Nesse dia, os gladiadores progressistas da Dilma dormirão como heróis dos oprimidos raciais, sociais e sexuais, e acordarão como avalistas da maior picaretagem do Brasil contemporâneo. Gente, é sério: isso vai dar uma ressaca danada.


Lula foi fazer comício para os petroleiros e gritou (quanto menos ouvem, mais ele grita) contra a perseguição “das esquerdas”. Ele está falando com vocês, seguidores do livro sagrado dos maniqueísmos. O povo não está nem aí para esse papo de esquerda. O que o povo sabe é que o emprego está indo embora e a inflação está voltando, por obra de um governo que destruiu as finanças públicas com sua gana parasitária. Isso é ser de esquerda? Resolvam aí entre vocês, antes que seja tarde.


A explicação do governo bonzinho para as doações confessadas pelos presos da Lava-Jato é que tudo foi recebido de maneira absolutamente legal. Ou seja: o dinheiro era sujo enquanto era propina, mas ao entrar legalmente no caixa do PT ficou limpinho. Como resumiu Renata Lo Prete: no mensalão, a estratégia petista era alegar caixa dois; no petrolão, a estratégia é alegar caixa um.

Quem pode acreditar que essa má fé compulsiva provém de um projeto humanitário de poder? Atualizem logo o seu selo de bondade, prezados cidadãos conscientes. Largar a mão da mulher sapiens quando ela estiver sendo varrida pelo dilúvio não vai pegar bem.

Manual de direitização

Desfiles de protesto, participação nas eleições, exercício do poder. Estes três tipos de acção política têm uma característica comum: as categorias populares estão a afastar-se ou a ser afastadas deles. Quando, a 11 de Janeiro último, milhões de franceses manifestaram a sua solidariedade com as vítimas dos atentados de Paris, a mobilização das classes médias contrastou uma vez mais com a do mundo operário e a da juventude dos bairros desfavorecidos, relativamente mais modesta. Há anos que a «rua» está a aburguesar-se. As urnas também. A cada nova eleição, ou quase, as taxas de participação regridem, em conjunto com o nível de rendimento. E a «representação nacional» não é em nada menos privilegiada, uma vez que o seu rosto se confunde com o das classes superiores. Será a política um desporto de elite?

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Isto já se observa no caso da esquerda europeia. Criado no início do século XX pelos sindicatos, o Partido Trabalhista britânico tinha a vocação de representar o eleitorado operário. Em 1966, 69% dos trabalhadores manuais davam-lhe o seu voto; esta percentagem passou para 45% em 1987, e depois para 37% no escrutínio de 7 de Maio último. O blairismo pensava que era preciso dar prioridade às classes médias. Missão cumprida: é com o eleitorado mais burguês da sua história que os trabalhistas acabam de sofrer uma estrondosa derrota eleitoral …

«A crescente desafeição dos meios populares pelos partidos de esquerda, observável em todas as democracias ocidentais electivas», salienta o politólogo Patrick Lehingue, «não é sem dúvida alheia à rarefacção dos eleitos que eram oriundos dos meios desfavorecidos e haviam passado pelas condições de vida ali existentes». Veja-se o caso francês. Em 1945, um quarto dos deputados franceses eram operários ou empregados antes de serem eleitos; hoje já são apenas 2,1%. Em 1983, setenta e oito autarcas de comunas com mais de 30 mil habitantes provinham ainda destas duas categorias sociais (maioritárias na população); passados trinta anos eram apenas seis.

Será o sistema representativo? Mais de metade dos americanos consideram que o Estado devia redistribuir a riqueza taxando fortemente os mais abastados. Entre estes últimos – é humano – só 17% partilham tal desejo. Contudo, o funcionamento das democracias ocidentais garante que a sua opinião será vencedora, uma vez mais sem debate real. Uma classe consciente dos seus interesses mostra-se tanto mais serena quanto diversos temas de distração realçados pelos media que ela detém continuarem a encantar o debate público. E a opor entre si as categorias populares.

Quando este sistema está bem oleado, já só falta convocar peritos muito sapientes cuja missão é recordar-nos que tanto a apatia de uns como a cólera dos outros se explicam pela «direitização» das nossas sociedades…

Serge Halimi

Dilemas da crise


O sistema parlamentarista de governo vigeu por todo o período monárquico, garantindo a estabilidade política de um país em formação, palco de sucessivos levantes regionais de cunho separatista. Teve eficácia para garantir a unidade nacional.

A república, proclamada por meio de um golpe militar, introduziu o presidencialismo, inspirado no modelo dos Estados Unidos, único país que soube conciliá-lo com a democracia.

O Brasil não absorveu essa particularidade – e abraçou-se com a instabilidade. Caiu na vala comum, oscilando entre a ditadura e a democracia fisiológica, a que temos hoje em plena vigência. O parlamentarismo, contudo, não foi sepultado. Foi posto no freezer.

Em 1961, com a renúncia de um presidente conservador, Jânio Quadros, e a perspectiva de posse de um presidente esquerdista, João Goulart, em plena Guerra Fria, a criatividade política retirou do congelador, como medida paliativa, o parlamentarismo. Era um remendo para driblar a crise militar.

Tancredo Neves, negociador da solução, assumiu o cargo de primeiro-ministro, ao qual renunciaria, diante do empenho de Jango e da esquerda em sabotar aquela saída.

Passou o cargo ao deputado Brochado da Rocha, cujo nome se adequava ao que se pretendia: mostrar a impotência do parlamentarismo para resolver os desafios da crise brasileira. O presidencialismo foi restabelecido por plebiscito, em 1963, desembocando no golpe militar de 1964.

O golpe, na verdade um contragolpe, teve apoio civil, na expectativa de que cumpriria apenas um mandato tampão até as eleições do ano seguinte. As eleições diretas não vieram – viriam apenas 25 anos depois, em 1989, com a eleição de Collor.

Na Constituinte de 1988, ainda se tentou a solução parlamentarista, abortada pelo governo Sarney e remetida a novo plebiscito, em 1993. Como em 63, o povo optou pelo presidencialismo, graças à retórica populista das lideranças políticas. Não é simples explicar as tecnicalidades de um sistema político complexo, o que favoreceu a preservação do status quo.

Hoje, diante da falência do governo Dilma, volta-se a falar em parlamentarismo – e mais uma vez como truque para uma transição política anódina, com data marcada para ser abortado. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, foi claro: o parlamentarismo vigeria por este mandato, em que, assim sendo, seria ele próprio um dos favoritos para ocupar o posto de primeiro-ministro.

Em 2018, voltaria o presidencialismo, com a eleição direta do novo presidente da república. Desnecessário dizer que, nesses termos, as chances de cumprir a missão estabilizadora serão nulas. Funcionará como mero anestésico, adiando a crise e seus conflitos. Há ainda complicadores jurídicos: o fato de ter sido derrotado em dois plebiscitos – o anterior já sob a vigência da atual Constituição – poderia gerar questionamentos judiciais.

Seja como for – e aqui não se está discutindo os méritos da mudança, que exigiriam artigo específico -, o simples fato de tal discussão já estar sendo feita a céu aberto, com a participação e o patrocínio do presidente da Câmara, indica que ninguém mais questiona o fim do governo Dilma. Acabou-se – e ponto.

Discute-se, isto sim, como será formalizada sua saída: se por impeachment (pedaladas fiscais), se por cassação (caso se confirmem as doações eleitorais com dinheiro roubado da Petrobras) ou se por renúncia.

A torcida é que se dê por renúncia, que permitiria uma liturgia sucessória protocolar, sem maiores contratempos. O próprio Lula, convertido em demolidor da criatura que ele mesmo inventou – e sonhando em voltar à presidência em 2018 -, torce por essa solução. Tornou-se subitamente adepto do parlamentarismo-tampão, que o devolveria à oposição, alheio aos dolorosos ajustes econômicos que as sucessivas gestões do PT tornaram imperativos.

A confusão é geral - e, tendo a operação Lava-Jato como pano de fundo, o país assiste, perplexo, a mais um capítulo da falência de seu sistema político. Em tal contexto, cabe o velho axioma das crises: quem disser que sabe o que vai acontecer está no mínimo mal informado.

A escolha da morte

O Estado que achaca


Um Estado existe para servir aos que o compõem. O cidadão é o seu começo, meio e fim. Quando o Estado começa a atormentar rotineiramente a vida da sua matéria-prima, é porque seu sistema de alternância autolimpante não tem efeito. O voto, obrigatório, vira mera formalidade.

O Poder, atolado, renova-se sem sair do lugar. É escravo da máquina burocrática que se instalou há séculos, alimentada pela corrupção. O cidadão iludido por um sistema político ineficaz desconfia de ações de um governo que assaca, acua. Não sabe mais se está sendo acolhido ou achacado. E é incapaz de reverter os motores.

Em 1.º de janeiro de 1999, tivemos que ir às pressas atrás de um kit de primeiros socorros, valor médio de R$ 10, estojo fajuto com dois rolos de atadura, tesoura com ponta arredondada, dois pares de luvas de procedimento, esparadrapo, dois pacotes de gaze e bandagem de algodão, que, pelo artigo 122, se tornara obrigatório na aprovação do Código de Trânsito Brasileiro. Multa de R$ 115 e mais cinco pontos no prontuário do motorista flagrado sem o kit.

Meses depois, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei prevendo o fim da sua obrigatoriedade, que podia causar sérios prejuízos se usado inadequadamente. Tarde demais: ela movimentara um comércio de cerca de R$ 270 milhões.

“A única razão da existência do kit é fomentar o lucro dos fabricantes dos materiais e equipamentos e dos revendedores. Os motoristas e a população nada têm a ganhar com a exigência dele”, afirmou o deputado Padre Roque (PT-PR), autor da revogação.

Em janeiro de 2000, passei com toda família o Réveillon da virada do milênio em Angra, num inédito reencontro de irmãos, sobrinhos e cunhados que moram aqui e na Europa, brasileiros e estrangeiros, planejado com antecedência.

A foto com todos de branco foi tirada. A data merecia o encontro histórico. Deu tudo certo. Mas quase terminou em tragédia.

Eu, minha irmã mais velha e meu cunhado voltávamos juntos na minha van adaptada. É um carro feito em 1995 sob medida, com plataforma móvel, porta automática, que um tetraplégico não completo, como eu, consegue dirigir. Tínhamos três opções de caminho: Barra Mansa, Taubaté-Ubatuba e Tamoios.

Meu cunhado a dirigia, enquanto eu papeava com a irmã atrás. Decidimos pela Taubaté-Ubatuba. No pé da Serra, enchemos o tanque de 70 litros e começamos a subi-la, com aroma de gasolina ainda entre nós. É das estradas mais lindas e íngremes que cruzam a Serra do Mar, com poucos pontos de ultrapassagem, que exige perícia e potência do motor. O câmbio automático trabalhava. O seis cilindros rangiam. Até uma fumaça branca começar a entrar pelos dutos de ar. A van parou de funcionar num trecho sem acostamento. Meu cunhado disse: “Não anda mais”. Uma fila de carros se formou atrás.

Um carro nos ultrapassou velozmente, parou numa distância prudente à nossa frente. O passageiro saltou e nos acenou com os braços. Ele está tentando nos dizer algo. Meu cunhado abriu a janela calmamente. “Pulem! Está pegando fogo embaixo do carro!”, gritava.

Consegui orientar didaticamente o meu cunhado: “Coloque o câmbio do PARK, desligue o motor. Pegue o extintor aí na porta, apague o fogo, enquanto opero a plataforma elétrica”.

Ele desceu do carro. Era uma operação cheia de botões, comandos e relês: abrir a porta, estender a plataforma, me encaixar nela e descer. Com o motor ligado, não desceria. Sem bateria, não funcionaria. Consegui. Me afastei do carro seguido pela minha irmã. Vi meu cunhado sob ele. Vi as labaredas. Ele mirava o jato de espuma no fogo. Uma mancha de óleo fluía no asfalto. Estourara a caixa de câmbio. O óleo escorreu pelo cano de escapamento fumegante e pegou fogo. Ele conseguiu apagar antes de o fogo chegar ao tanque de combustível. Seria uma explosão pra lá de Bagdá.

Graças a um equipamento do tamanho de uma berinjela, que se compra em qualquer posto de gasolina por R$ 50, estamos vivos. E mais. Meu carro, que não existe similar nacional, e importei quando o dólar valia R$ 0,80, está comigo até hoje.

Então eu soube que meu anjo da guarda agora é considerado obsoleto. Todos os veículos em circulação no País devem possuir a partir deste mês um novo tipo de extintor, o ABC, capaz de apagar incêndios de uma variedade maior de materiais (em madeira e tecidos, materiais comuns em carros). A medida faz parte da resolução 333 do Conselho Nacional de Trânsito. Chegou a ser derrubada por uma liminar e voltou a vigorar.

Até então, os extintores do tipo BC, como o meu, eram recomendados apenas para materiais como líquidos inflamáveis e equipamentos elétricos. Quem rodar com o extintor fora das especificações está sujeito a multa de R$ 127,69 e a inclusão de cinco pontos na carteira. Os teóricos da conspiração têm todo o direito de dizer: “Aí tem...”.

Tais normas não aparecem da noite pro dia. Técnicos de agências oficiais garantem estudos e pesquisas. Mas sua implantação nos pega sempre de surpresa.

No governo Lula, em duas canetadas, duas normas mudaram regras antigas e devem ter dado muito lucro a alguém ou alguns: a da tomada de três pinos (nada universal) e a reforma ortográfica, que tirou uns hifens de um lugar e colocou em outros, extinguiu uns acentos precisos, como de “pára”, mas deixou outros, obrigando a indústria editorial a se reformular.

Alguns pensaram em quem faturaria com novos adaptadores, que tornaram todas as instalações elétricas obsoletas, e no faturamento de parques gráficos e vendedores de papel.

Anos atrás, fomos obrigados a regular os motores para a inspeção veicular anual, medida ambientalmente justa, mas que está suspensa pela própria Prefeitura. Nesta semana, outra novidade: toda empresa (exceto as cadastradas no Simples) é obrigada a ter certificado digital, o e-CNPJ, que custa em torno de R$ 500, para emitir notas fiscais. Não existe opção de quem não quer ser digital.

É obrigatório, a obrigatoriedade, a partir de tal data, a regra, a norma, tem quê! Um Estado que viveu quase 400 anos sob regras monárquicas, custa a debater seus problemas e conflitos republicanamente com seus cidadãos.

E os adversários do consumo o que dizem?

A indústria automobilística registrou no primeiro semestre do ano uma queda de 20% em suas vendas e avalia que em fins de dezembro esse percentual chegue a 23%. Neste momento, 325 mil veículos estão estocados nos pátios das fábricas e 35,8 mil trabalhadores, ou 25% de todos os recursos humanos das montadoras, estão em férias coletivas, licença ou suspensão dos contratos de trabalho.
Enquanto, no primeiro trimestre do ano, o consumo das famílias caiu 1,5%, os indicadores da intenção de consumo sinalizam para uma trajetória de ainda menor e, portanto, para menores vendas. Segundo pesquisa da Fecomercio/SP, a intenção de consumo das famílias caiu 26,3% em 12 meses. No varejo paulista, o mais dinâmico do país, as vendas caíram 12% no mês de abril quando comparadas com o mesmo mês de 2014.

Na outra ponta do novelo em que o governo enredou a economia nacional, o desemprego, entre maio de 2014 e maio de 2015, subiu de 4,6% para 6,7% e o IBGE informa que o número de pessoas à procura de vaga chegou a 1,6 milhão, com crescimento de 39% em relação a igual período do ano passado. Dezesseis por cento são jovens.

Quando as coisas iam bem, o governo festejava como seus os números mensais do crescimento do emprego. Era como se cada vaga fosse aberta não pela ação empreendedora dos empresários, mas por decisões do governo. Sabe-se hoje, pela evidência dos fatos, que o governo petista foi um desastre marcado pela irresponsabilidade fiscal e pela decadência moral. Agora, quem desemprega são as empresas. Ah!

Além dos que vicejam à sombra do governo e a tudo aplaudem, há um grupo de pessoas, raramente mencionadas, que devem estar especialmente exultantes com os males da economia brasileira. Quem são? Você já as ouviu falando. Criticam a sociedade de consumo. Não se desgostam com as filas de Cuba e da Venezuela. Sonham com uma sociedade de demandas mínimas. Talvez seu modelo de vida pudesse ser representado pelas comunidades menonitas, mundialmente conhecidas como amish, que rejeitam os bens produzidos pela indústria e pela tecnologia. Os amish brasileiros, porém, são fake, vão às compras como todo mundo e certamente gostam de ganhar presentes. Mas condenam a sociedade de consumo, típica do capitalismo.

Seus motivos são ideológicos. Como resulta impossível comparar os bens sociais, tecnológicos, científicos, culturais e econômicos do capitalismo com os do socialismo e do comunismo, eles rejeitam o efeito para reprovar a causa. 


Esquecem-se de que empregados e desempregados, empreendedores de todos os níveis, e até os servidores públicos cujo pagamento depende dos impostos incidentes sobre a riqueza gerada no país, estão torcendo para que se retomem as condições necessárias ao crescimento da produção e da demanda. Ninguém quer viver como amish! Por que será que os países comunistas estão completamente fora dos fluxos migratórios de que hoje tanto se ocupam os governos do Ocidente?

Por uma questão de justiça, em tempos de crise, assim como os eleitores do PT deveriam pagar mais impostos para cobrir os estragos do governo que elegeram e reelegeram, os adversários do consumo alheio deveriam ser priorizados na hora do desemprego, não é mesmo?

Falou, mas não disse

Como diria o conselheiro Acácio, o bom da ficção é que ela não tem compromisso com a realidade. Descobri esse óbvio ululante há alguns anos, ao tirar férias das biografias para escrever dois romances, "Bilac Vê Estrelas" e "Era no Tempo do Rei". Embora trabalhasse com personagens reais, respectivamente o poeta Olavo Bilac e o jovem príncipe D. Pedro, podia fazê-los falar o que eu quisesse. Mas, não sei como, em certo momento ganharam autonomia e passaram a falar por conta própria.


A presidente Dilma, ela, em si, um personagem de ficção –seu autor foi Lula–, já atingiu o estágio em que pode falar o que quiser, sem compromisso com a realidade e, muitas vezes, significando o contrário. Exemplo: em 2014, antes da eleição, foi à TV anunciar um corte de 18% nas contas de luz e que o Brasil era "o único país a baixar o custo da energia e aumentar a produção no setor elétrico". Não ria.

Há meses, Dilma anunciou o programa "Brasil: Pátria Educadora". Ato contínuo, decepou 31% do orçamento do MEC (o maior corte entre todos os ministérios), representando R$ 7 bilhões a menos em circulação no setor. Tal medida deixou de tanga professores, alunos, bolsistas, funcionários das universidades, terceirizados e fornecedores, além de apunhalar o setor editorial com a queda radical na compra de livros este ano e calote nas compras do ano passado.

Esta semana, Dilma comparou-se a Tiradentes e declarou "não respeitar delatores". Referia-se aos que estão praticando a delação premiada, medida que ela assinou, autorizando, e elogiou em outubro último como "útil para desmontar esquemas de corrupção".

Agora, jogando para a galera em Washington, Dilma prometeu que "até 2030, o Brasil terá desmatamento zero". Considerando-se seu histórico, tudo indica que, até 2030, teremos uma Amazônia careca.

O perigo do robô que trabalha ao lado

A morte de um trabalhador em mãos de um robô em uma fábrica da Volkswagen na Alemanha despertou os piores pesadelos relacionados com a robótica: por um lado, a possibilidade bem remota de que máquinas com capacidade para tomar decisões possam fazer mal a seres humanos de modo voluntário, por outro, a crescente presença, muito real, de robôs nas dependências industriais e na agricultura, que acabem substituindo os trabalhadores.

A morte, que está sendo investigada pelo Ministério Público alemão, teve lugar na segunda-feira na montadora da empresa automobilística alemã de Kassel-Baunatal, situada 100 quilômetros ao norte de Frankfurt, no centro do país. O jovem de 21 anos trabalhava para outra empresa e estava na fábrica para instalar maquinário, informa Luis Doncel desde Berlim. As primeiras investigações indicam que um companheiro que se encontrava fora das instalações acionou por engano o robô, que aprisionou o rapaz pelo tórax, arrastando-o até uma placa metálica, segundo explicou o porta-voz da empresa, Heiko Hillwig. Depois do acidente, o jovem foi levado para o hospital de Kassel, mas o serviço de emergência já não pôde fazer nada por sua vida. A procuradoria investiga o caso, mas seu porta-voz disse que ainda é muito cedo para atribuir responsabilidades. A fábrica de Baunatal tem 800 robôs.

Paul Verschure, diretor do Specs, o grupo de trabalho sobre inteligência artificial e robótica da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, também tem a impressão de que se tratou “de um erro humano”, embora reconheça que ainda faltam muitos detalhes. “Esses robôs não são autônomos, são máquinas com muita força que levam a cabo tarefas muito rudimentares e repetitivas”, garante em conversa telefônica. “É um exagero chamar a isso de robô porque não tem percepção, nem sentidos. Há um erro de segurança. Não estamos diante de um Terminator nem diante de um pesadelo de robôs matando humanos”, prossegue esse perito em inteligência artificial, que dirige uma equipe de 30 pessoas.

A possibilidade de que as máquinas acabem dominando os humanos entrou na imaginação quase no mesmo instante em que surgiu a robótica, através de filmes como Metrópolis, a sequênciaExterminador do Futuro ou o recente Ex Machina. O cientista Isaac Asimov estabeleceu já em 1942 as chamadas três leis da robótica, feitas para que um robô nunca pudesse fazer mal a um ser humano: “Um robô não irá ferir um ser humano ou, por negligência, permitirá que um ser humano sofra algum dano, um robô deve obedecer às ordens dadas pelos seres humanos, exceto se essas ordens entrarem em conflito com a primeira lei, um robô deve proteger sua própria existência na medida em que essa proteção não conflite com a lei N° 1 ou a lei N°2”.

Ainda que existam centenas de universidades e empresas com programas de inteligência artificial, e tenham ocorrido avanços extraordinários em terrenos como a percepção e nos sentidos das máquinas, todos os especialistas concordam que a presença de robôs como o C3PO e o Exterminador do Futuro ainda está muito distante de acontecer e que os robôs do futuro se parecerão mais com as sofisticadas máquinas que limpam sozinhas – existem atualmente por volta de dez milhões nos lares de todo o mundo –, com minúsculos robôs capazes de operar dentro do ser humano – Harvard está trabalhando nisso – e com carros autônomos. “Robôs confiáveis, especialmente aqueles que possam trabalhar fora de recintos de segurança em uma fábrica, são muito difíceis de fabricar. Os robôs continuam sendo muito estúpidos. Eles nos fascinam, mas ainda falta muito para que façam alguma diferença no mundo”, escreveu a revista The Economist em uma recente reportagem de capa sobre a robótica.


Os robôs, entretanto, representam uma indústria crescente – a UE anunciou em 2014 um investimento de 2,8 bilhões de euros (9,6 bilhões de reais) para um setor no qual a Europa possui 32% do mercado mundial, enquanto o Google comprou oito empresas de robótica nos últimos dois anos. De acordo com dados do setor, os robôs já movimentam 19 bilhões de euros (65 bilhões de reais) por ano. E sua presença na indústria é cada vez mais importante, assim como o debate sobre a possibilidade de que milhares de empregos atuais em setores como o automotivo e a indústria sejam perdidos em um futuro bem próximo. A empresa de consultoria norte-americana Gartner – a principal no campo da tecnologia – disse em junho que “quanto mais sofisticadas as máquinas forem, se transformarão cada vez mais em alternativas viáveis aos trabalhadores humanos, o que sem dúvida terá repercussões na indústria”. “As máquinas que somos capazes de fabricar são cada vez melhores”, explica Verschure. “Essa é a revolução que iremos viver, o final de um modelo de trabalho que surgiu no século XIX. Mas daí a culpar os robôs pelo desemprego é outra história: a Espanha tem um desemprego altíssimo e poucos robôs na indústria”.