terça-feira, 30 de agosto de 2016

É golpe?

A defesa da presidente afastada e a própria presidente afastada, não fossem bastante técnica e materialmente comprovados os equívocos dos lançamentos contábeis voluntários junto à determinação de praticá-los, apela para a consciência de seus juízes (na Câmara dos Deputados e no Senado Federal) para a alternativa muito cômoda de que o processo que ora tramita na Câmara Alta compõe golpe político. Assim tentaram seus procuradores, vigorosamente na primeira etapa, e alguns membros (áulicos, melhor dizendo) entoaram em altas vozes em seus respectivos votos que, de fato, aquele procedimento configurava golpe. Não atinam seus prosélitos que esta manifestação solerte repercute mal para o país no concerto das nações.

Quer seja decretada a procedência da pronúncia ou não, o processo a que se submeteu D. Dilma é, primeiramente, constitucional, e o convencimento de seus juízes deriva de uma conclusão política porque a Lei Maior assim o quer. Se um suposto golpe tem raiz constitucional, então seu curso não configura golpe. Em segundo lugar, a apreciação da acusação na primeira fase envolveu, além da dissecação de sua procedência, minuciosamente demonstrada por atos e documentos exibidos e apontados pelo insuspeito prof. Miguel Reale (por isto mesmo recrutado por Lula para seu ministério), também representa um paralelo político, que é o motor do processo. Não se nega, pela verdade, que parlamentares não simpáticos à presidente afastada aproveitam-se da circunstância para contribuir para torcer para sua queda, também estimulados por seus eleitores ou mesmo atendendo à conveniência de cada qual. Mas, em síntese, o que provocou o pedido de impedimento foram fatos relatados e provados ou apontados como de rebeldia do Executivo às balizas orçamentárias e fiscais em vigor no ordenamento jurídico da República.


O processo ainda em curso no Senado Federal teve origem em petição longa e minuciosa subscrita por ninguém menos que o ilustre homem público Hélio Bicudo (que tão somente interpretou o sentimento das ruas), não apenas um cidadão do mais alto conceito, mas membro respeitável da fundação do Partido dos Trabalhadores, intelectual que elegeu os ideais programáticos da legenda e que, até indignar-se ou rebelar-se contra as ações partidárias erráticas daquela agremiação, constituía uma voz ouvida e respeitada das facções do PT. Começa por aí a legitimidade do processo movido contra a presidente afastada. Seu acusador original, todos sabemos, está acima de interesses pessoais, e elaborou o pedido sob o manto de sua formação cívica.

Ainda, para desfazer o alarido de que o acolhimento do pedido pela Câmara dos Deputados resultou de retaliação ou vingança de seu presidente por animosidade circunstancial a D. Dilma, também não prevalece, porque o deputado Eduardo Cunha já havia recebido dezenas de petições de igual fim, até com teores diferentes, e não as despachara; a de Hélio Bicudo ainda aguardou tempo, até que o presidente, presumível ou discricionariamente aguardava decisões e atos de D. Dilma que viessem a dissipar a desconfortável posição política em que a presidente se encontrava.

Contudo, o elemento fundamental que distingue o procedimento ora em tramitação para o de golpe é que a acusação não surgiu das sombras, não atacou pela noite, mas à luz solar, provinda de uma autoridade que preside o parlamento, todo ele eleito pelo povo. Não houve coação para que se deferisse a petição de Hélio Bicudo, o presidente da Câmara atuou em juízo subjetivo, que lhe é imputado pelo regimento. O processo transcorreu sem atropelos naquela casa e, por fim, alcançou o plenário, em que os que o compunham, membros de todos os matizes ideológicos, eleitos pelo povo, votaram livremente, pública e solenemente, à luz das câmeras, sem notas destoantes que merecessem queixa por qualquer irregularidade. E a sessão que deferiu o impedimento foi delirantemente aplaudida pelas ruas, que lhe deram impulso e força. Já a ocorrência de golpe identifica-se, primeiramente, pela surpresa, filha da trama e da urdidura. Assim foi o golpe de 64, em que seus executores planejaram sua execução em surdina, sem participação popular, e avançaram militarmente para ocupar pontos estratégicos sem consultar o povo, sponte sua, afastando as até então autoridades e provendo os postos ocupados a seu alvedrio e conveniência. Aí sim, estava materializado o golpe, que veio a durar 20 anos.

Os defensores da tese de golpe estão à mingua de fatos relevantes e longe da verdade.

O tempo o dirá.

José Maria Couto Moreira

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