quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Ninguém pode estar acima da lei

Em 2000, na qualidade de professora de Direito Constitucional e membro do então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), elaborei parecer acerca do alcance do instituto da imunidade parlamentar. Um dramático caso de violação a direitos humanos submetido àquele conselho apontava, de um lado, para o brutal assassinato de uma jovem na Paraíba e, por outro, para o principal acusado — à época um deputado estadual, no exercício de seu quinto mandato, protegido pela imunidade parlamentar. Naquele tempo, parlamentares só poderiam ser processados e julgados criminalmente mediante prévia autorização da Casa a que pertencessem. Por duas vezes, a licença foi negada, assegurando a impunidade e a denegação de justiça. Ao violar parâmetros protetivos mínimos no plano internacional, o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

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O resultado foi a promulgação da Emenda Constitucional nº 31/2001, que reduziu o alcance da imunidade parlamentar, de forma a abolir a exigência da prévia licença para o julgamento de parlamentares. A imunidade parlamentar processual com aquela amplitude simbolizava direta afronta ao ideário republicano, ao princípio da igualdade de todos perante a lei e à necessária accountability de agentes públicos, convertendo a imunidade em inaceitável impunidade.

Passados 16 anos, o debate na atualidade se centra no instituto do foro privilegiado para o julgamento de infrações penais comuns praticadas por autoridades públicas (computando um total de 22 mil cargos). Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os crimes comuns cometidos por membros do Congresso Nacional, por ministros de Estado e pelo presidente da República. Ao Superior Tribunal de Justiça compete processar e julgar os crimes comuns cometidos por governadores de estado. Já aos Tribunais de Justiça cabe o julgamento dos prefeitos. Consequentemente, no âmbito do Ministério Público, a legitimidade para o oferecimento da denúncia se reduz extraordinariamente, tendo em vista que, em virtude do foro privilegiado, apenas e tão somente o chefe maior da instituição — os procuradores-gerais de Justiça, nos estados, e o procurador-geral da República, na União — teria o poder de denunciar a prática do crime.

Recente pesquisa realizada pela “Folha de S. Paulo” (“Prescrição atinge um terço de ações contra políticos no Supremo”, 14-11-2016) revela que do universo de 113 ações penais decididas pelo STF, envolvendo réus com foro privilegiado, no período de 2007 a 2016, 33% dos casos culminaram em prescrição. Isto é, em mais de um terço dos casos o tempo levou à extinção da punibilidade, traduzindo, impunidade. Adicione-se que 25% dos processos foram ainda remetidos para outras instâncias, em razão da perda do foro privilegiado (“STF deixa de julgar um quarto dos processos contra políticos devido a perda de foro”, “Folha de S.Paulo”, 15-11-2016).

Uma vez mais, há que se recorrer aos mesmos argumentos que, há 16 anos, sustentaram a defesa da redução da imunidade parlamentar processual. Do mesmo modo, o foro privilegiado constitui direta violação ao ideário republicano, ao princípio da igualdade de todos perante a lei e à necessária accountability dos agentes públicos. Some-se, ainda, o argumento de que os órgãos jurisdicionais superiores (como o STF e o STJ) não têm vocação e tampouco estrutura para a instrução processual penal. Basta atentar que o STF julga, em média, cem mil casos por ano. O prazo médio de recebimento de uma denúncia pelo STF é de 617 dias, enquanto que na primeira instância é cerca de uma semana. Além disso, a todos são assegurados o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, bem como o duplo grau de jurisdição, no âmbito de um Judiciário independente e autônomo, sendo os julgamentos públicos e fundamentadas todas as decisões.

Em 30 de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou a proposta de emenda à Constituição que estabelece o fim do foro privilegiado para autoridades em crimes comuns, submetendo a proposta ao plenário da Casa. Abolir o foro privilegiado surge como imperativo ético para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, que pressupõe igualdade de todos na afirmação do ideário republicano, pautado pelo primado da legalidade e pelo combate à impunidade, em que ninguém pode estar acima da lei.

Flavia Piovesan

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