domingo, 15 de outubro de 2017

Por Aécio, Cármen Lúcia ignorou Cármen Lúcia

Os arquivos do Supremo Tribunal Federal guardam um voto antológico da ministra Cármen Lúcia. Foi proferido em 22 de agosto de 2006. A íntegra da peça está disponível aqui. Nela, a atual presidente da Suprema Corte indeferiu o pedido de liberdade de um deputado estadual de Rondônia acusado de corrupção. Para manter o personagem atrás das grades, a ministra desconsiderou sua imunidade parlamentar. Sustentou a seguinte tese:

“Imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais, ênfase dada ao da igualdade de todos na lei.”

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A posição da ministra prevaleceu na Primeira Turma do Supremo por 3 votos a 2. E o então deputado José Carlos de Oliveira, acusado de comandar uma quadrilha que desviara R$ 50 milhões dos cofres estaduais, ficou preso. Na última quarta-feira, decorridos 11 anos, surgiu no plenário da Suprema Corte uma outra Cármen Lúcia.

Irreconhecível, esta ‘Cármen do B’ rasgou, por assim dizer, o voto memorável de 2006. Fez isso ao desempatar em 6 a 5 o julgamento que transferiu para o Legislativo a última palavra sobre sanções cautelares que impeçam deputados ou senadores investigados criminalmente de exercer o mandato. A nova Cármen Lúcia ignorou a antiga para beneficiar diretamente o tucano Aécio Neves, afastado do mandato de senador.

A Cármen Lúcia antiga servira de inspiração para o colega Teori Zavascki que, antes de morrer num acidente aéreo, deu à luz o voto que resultou, no ano passado, no afastamento do então deputado federal Eduardo Cunha do mandato e da presidência da Câmara. Teori escorou parte do seu arrazoado nas posições da ex-Cármen. Foi seguido pela unanimidade dos ministros do Supremo.

O julgamento da semana passada foi motivado justamente por uma ação movida por três legendas que integravam a milícia parlamentar de Eduardo Cunha: PSC, PP e Solidariedade. Alegaram que o Supremo não poderia suspender o mandato de congressistas senão com o aval da respectiva Casa legislativa. Sustentaram que, por analogia, deveria ser observado o artigo 53 da Constituição.

De acordo com este artigo, deputados e senadores só podem ser presos “em flagrante de crime inafiançável.” Nessa hipótese, o processo tem de ser enviado ao Senado ou à Câmara em 24 horas. Deputados e senadores têm a prerrogativa de confirmar ou revogar a prisão. Agora, graças ao voto de minerva da neo-Cármen e do recuo da banda mutante do Supremo, os parlamentares poderão revogar também sanções cautelares (alternativas à prisão) aplicadas contra eles.

A Constituição estadual de Rondônia reproduz o artigo 53 da Constituição federal. Por isso, a defesa do então deputado José Carlos de Oliveira, preso por ordem do Superior Tribunal de Justiça, batera às portas do Supremo. Pedira a revogação da prisão, sob o argumento de que não havia flagrante. Reclamava, de resto, que o encarceramento do deputado não fora submetido à apreciação da Assembleia Legislativa rondoniense.

Cármen Lúcia deu de ombros. Realçou em seu voto que o caso de Rondônia era excepcional. O esquema de corrupção envolvia 23 dos 24 deputados estaduais com assento na Assembleia. Escreveu: “Como se cogitar, numa situação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética, que os membros daquela Casa poderiam decidir livrememte sobre a prisão de um de seus membros…?”

Graças à decisão de Cármen Lúcia de virar a si mesma do avesso, as punições impostas a Aécio serão analisadas pelo Senado em sessão marcada para terça-feira. O grão-tucano precisa dos votos de 41 dos 81 senadores para ter de volta o mandato e o direito de sair de casa à noite. Há no Senado 35 polítícos encalacrados na Lava Jato. Mas a nova Cármen Lúcia não enxerga em Brasília a mesma “situação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética” que via em Rondônia.

No voto sobre Rondônia, Cármen Lúcia escreveu: “…Aceitar que a proibição constitucional de um representante eleito a ter de submeter-se ao processamento judicial e à prisão sem o respeito às suas prerrogativas seria um álibi permanente e intocável dado pelo sistema àquele que pode sequer não estar sendo mais titular daquela condição…”

Nada pode ser mais prejudicial à Justiça do que veredictos que variam conforme as circunstâncias e a importância do personagem envolvido. Com o auxílio da sua presidente, o Supremo Tribunal Federal atentou contra a segurança jurírica ao tratar Aécio Neves com uma benevolência que sonegara ao ex-deputado estadual José Carlos de Oliveira e ao ex-presidente da Eduardo Cunha.

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