segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Operação Abafa

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, resumiu a ópera em uma frase: “A Operação Abafa é uma realidade visível e ostensiva no Brasil de hoje”.

“Há os que não querem ser punidos e há um lote pior, os que não querem ficar honestos nem daqui para a frente”, prosseguiu o ministro. “Depois da ação penal 470 [do mensalão] e de três anos de Operação Lava Jato, continuam com o mesmo modus operandi de achaque”, acrescentou.

Barroso não citou nomes, e nem precisava. Ele expôs o jogo na quinta-feira, horas depois de a Câmara negar autorização ao Supremo para processar Michel Temer.


 A blindagem do presidente acusado de corrupção foi a vitória mais visível e ostensiva da Operação Abafa. Ela entrou em campo em 2014, quando a Lava Jato começou a cercar empresários, operadores e políticos de todos os grandes partidos.

A guerra teve altos e baixos, mas a investigação ganhou a maioria das batalhas travadas até aqui. Conseguiu resistir às ofensivas do PT, que fritou um ministro acusado de não “controlar” a Polícia Federal. Depois enquadrou personagens que tentaram sufocá-la, como o peemedebista Eduardo Cunha.

O desejo de parar a Lava Jato une o sistema ameaçado pela operação. No ano passado, ele investiu no impeachment de Dilma Rousseff como solução para “estancar a sangria”, nas palavras de Romero Jucá. Agora a aposta é na permanência de Temer, e a desculpa para salvá-lo é o discurso da estabilidade econômica.

Na quinta-feira, o ministro Barroso alertou que a Operação Abafa não se restringe à ação coordenada dos políticos. “Essas pessoas têm aliados importantes em toda parte, nos altos escalões da República, na imprensa e nos lugares onde a gente menos imagina”, disse.

Alguns deles estão no próprio Supremo, e ainda não desistiram de anular provas e depoimentos que comprometem seus amigos do outro lado da praça dos Três Poderes.

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O que fazer em Lisboa
Lisboa (Portugal)

Delenda Lava Jato

Temer ficou porque era melhor para todo mundo. Melhor para o Congresso acuado pela Lava Jato e interessado em extrair vantagens de um presidente fraco. Melhor para a oposição que imagina crescer batendo nele.

Antonio Lucena
Melhor para os reais donos do poder satisfeitos com a sua agenda de reformas. Melhor até para a maioria dos brasileiros que o rejeita. Trocá-lo por quem? E a 15 meses de uma nova eleição?

As ruas não roncaram contra Temer porque não são tão bobas. Em junho de 2013, o ronco repentino e espontâneo surpreendeu governantes e partidos de todas as cores. Foi só um susto, contido pela ação violenta da polícia e dos black blocs.

Movimentos como aquele, sem líderes para conduzi-lo, sem pauta definida, esgotam-se como simples ventanias. Por vezes funcionam como aviso. Foi o caso.

A partir de 2015, as ruas roncaram forte contra Dilma pelas razões conhecidas – estelionato eleitoral, governo desastroso, recessão econômica com o desemprego de mais de 15 milhões de pessoas e a corrupção revelada pela Lava Jato.

O gatilho do impeachment foram os gastos não autorizados pelo Congresso e a maquiagem das contas públicas, uma clara violação da lei. De fato, Dilma caiu pelo conjunto da sua obra.

Temer foi acusado de corrupção. Seria o verdadeiro destinatário da mala com R$ 500 mil entregues pelo Grupo JBS ao então deputado Rocha Loures.

De fato, ele foi salvo por falta de alternativa e pelo conjunto da sua obra – a lenta recuperação da economia, a inflação quase negativa, a redução da taxa de juros, a compra de votos de deputados e a promessa de reformas que se forem feitas já virão tarde e pela metade.

Raros os deputados – Miro Teixeira (REDE-RJ) foi um deles – que discutiram a fundo e votaram com seriedade o pedido de licença para que a Justiça examinasse a denúncia de corrupção contra Temer.

Não será diferente se ele for de novo denunciado. É improvável que Rodrigo Janot tenha guardada alguma flecha de prata. Mas de prata ou de chumbo, se disparada ela paralisará o Congresso outra vez.

Neste país, corrupção não derruba presidente. Getúlio Vargas matou-se ao concluir que perdera apoio político para governar. Jânio Quadros renunciou para voltar depois como ditador. João Goulart foi deposto por um golpe militar.

A morte impediu a posse de Tancredo Neves. Fernando Collor governou de costas para os partidos. Se não fosse por isso teria completado o mandato. Dilma, também. Temer foi mais sabido.

A oposição ao governo havia anunciado que negaria quórum à sessão da Câmara. Só entraria no plenário se o governo tivesse conseguido reunir ali 342 deputados, o mínimo exigido para dar início à votação. Não foi assim.

Entrou o líder do PT a pretexto de participar da discussão da denúncia. Em seguida, mais três deputados do PT. A porteira havia sido aberta. O governo celebrou. Só contava com 263 deputados para votar.

Lula e Temer têm mais coisas em comum do que parece. Juntos comandam a Operação Delenda Lava Jato, um rol de iniciativas que visam a frear os avanços no combate à corrupção e, se possível, revertê-los.

Contam para isso com a ajuda de ilustres portadores de becas e de representantes das elites corruptoras e corrompidas. O Brasil velho de guerra estrebucha e resiste a ser passado a limpo. Continua de pé apesar das avarias.

A crise política ficou do mesmo tamanho. Poderá crescer com o que ainda está por vir.

Mais vale um gosto do que seis vinténs

Este gosto recebeu um imposto de 50% no provérbio depois do sucesso extraordinário que fez no Brasil o livro Um gosto e seis vinténs, de Somerset Maugham.

No berço da expressão está o preço de quatro vinténs para a caixa de açúcar, fixado pelo rei português Dom João V. O povo passou a dizer que não adiantava vender o açúcar, era melhor comê-lo: “Mais vale um gosto do que quatro vinténs”. Depois foi acrescentando “no bolso”, por melhor memorização, bolso soando parecido com gosto.

“Que um fraco rei faz fraca a forte gente”, o grande Camões, que no Brasil sempre fez sucesso e é até nome de bife, já tinha lembrado no século anterior.

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O monarca lusitano, entretanto, tornou-se forte com o dinheiro arrecadado no Brasil e reinou por 46 anos. Cobrou muitos impostos e taxas ao longo da vida, com o fim de apaziguar a aristocracia ao redor, sem controle de gastos de nenhuma espécie. Na época, quem mais pagou o pato foi o povo de Pernambuco.

Um gosto e seis vinténs, de Somerset Maugham, teve várias edições no Brasil, depois que a Editora Globo, quando dirigida por Henrique Bertaso, lançou a primeira edição. Maugham trocou cartas com Bertaso para desculpar-se de alguns entreveros sobre direitos autorais.

Órfão desde os dez anos, Somerset Maugham foi enviado à Inglaterra e educado pelo tio, vigário em Whitestable, e por isso escrevia em inglês. Seguindo as orientações do tutor, formou-se em Medicina aos 23 anos, mas o sucesso literário desde os primeiros títulos levou-o a dedicar-se inteiramente às letras. Ele morreu em 1965, aos 91 anos.

Nos anos 70, a Editora Abril lançou a coleção Imortais da Literatura Universal, com 50 volumes, um grande sucesso editorial, e entre os destaques estava outro título de Maugham muito lido no Brasil, A Servidão Humana.

Aliás, a coleção desmentiu a ideia de que literatura de qualidade não vende. Vende e bem, quando encontra os leitores. E, no caso, o encontro era nas bancas de revista. Maugham, Dostoiévski, Flaubert e Boccaccio chegaram a vender mais de 300.000 exemplares. O número 50 era Ficções, de um argentino chamado Jorge Luís Borges, que se tornaria o fascinante personagem Jorge de Burgos de Umberto Eco em O nome da rosa, em 1980.

O tradutor do livro de Borges na coleção da Abril era um jovem poeta gaúcho de apenas 30 anos, que em 2017 é o candidato brasileiro ao Prêmio Nobel. Seu nome: Carlos Nejar.

São insuficientemente vistos e estudados no Brasil certos vínculos muito bonitos entre os escritores e seu povo. Castro Alves abraçou a Abolição. Monteiro Lobato defendeu o petróleo, o combate à pobreza e não migalhas aos pobres, mas educação e leitura para eles, de que são exemplos iniciativas como o famoso Almanaque do Jeca Tatu, distribuído nas farmácias de graça, junto com o medicamento Biotônico Fontoura. Todos os citados tiveram seus livros constantemente reeditados. E seus editores, mais do que livros, produziram também muitos leitores.

Agora que está no outono da existência, o procurador de justiça (aposentado) Carlos Nejar acresceu mais um feito à sua biografia de tantos lances marcantes : fez do poema A vida de um rio morto: monumento ao Rio Doce (Editora Ibis Libris) um brado retumbante contra a má administração e a imprevidência que resultaram no pavoroso desastre de que foram vítimas o povo e um rio referencial da terra que os brasileiros habitam.

Mais vale um gosto, mais vale um rio, do que vinténs ou bilhões no bolso ou na conta.

Kafka, Buñuel e García Márquez na noite obscura do Congresso

Ao desligar a televisão, na quarta-feira passada, a tarde do processo contra Temer no Congresso brasileiro, tive a sensação de que as obras-primas da literatura e da arte mundial, como as dos escritores Kafka e Gabriel García Márquez e do cineasta Luis Buñuel, amigo de Lorca, não são mais surreais que o vivido ali.

Ninguém sabia se se tratava de uma festa ou de um funeral. Alguns se debulhavam, gritando ao pronunciar seu “não” para acabar com Temer, e outros pareciam estar nas pontas dos pés, sussurrando um “sim” para salvá-lo, como se estivessem no quarto de um doente em coma ou tivessem vergonha de seu voto.

Ninguém entendia nada, como no Processo de Kafka, porque era difícil saber se se tratava de salvar um inocente ou de aniquilar um criminoso, porque todos dizia o mesmo para bendizê-lo ou maldizê-lo.

Uns queriam que Temer não fosse investigado “pelo bem do Brasil”, e outros, também por esse mesmo ânimo, preferiam que fosse. Os que queriam salvá-lo pronunciavam um “sim” seco, quase com medo de ser descobertos, e os que queriam tirá-lo bradavam como para reforçar com seus gritos uma derrota anunciada.

Os motivos para salvar ou condenar o presidente quase nunca mencionavam se ele era inocente ou culpado. Eram a economia, as reformas, a estabilidade do país ou a maldade da direita, que odeia os pobres. Temer era como um fantasma que ninguém sabia para que servia.

A noite kafkiana parecia também uma reencarnação do filme de Buñuel O Discreto Charme da Burguesia, no qual, dentro de uma sala em que se desenrola toda a trama, todos se odeiam enquanto fingem ser amigos, em que todos vão a lugar nenhum, em que se escondem atrás de religião ou da ideologia para que não apareçam seus lados podres.

Naquela noite de Temer, o surrealismo atingiu seu ápice quando um deputado sobre o qual pesam graves suspeitas de crimes cravou um “voto ‘sim’ contra a corrupção”. Disse-o com tanta convicção que quase se sufocou.

Ganha o prêmio milionário quem for capaz, depois daquela tarde de realismo mágico à García Márquez, de entender o que se passa hoje na política brasileira, da qual a tarde do Congresso foi símbolo e emblema.

Acho que o escritor colombiano poderia reescrever Cem Anos de Solidão, revisado à brasileira, porque, queira ou não, o Brasil é parte do continente do realismo mágico, no qual é difícil distinguir o que é real ou imaginário.

Caso se contasse, por exemplo, no exterior, que na tarde do processo kafkiano de Temer, os discípulos do Partido dos Trabalhadores (PT), que despojavam a gritos o presidente corrupto, provavelmente o preferem de pé até 2018, para que chegue ao fim exangue e exausto e possa ser usado eleitoralmente, ninguém acreditaria. Mas por que o PT, mestre em mover as ruas, não levou a Brasília nenhum dos seus para gritar “Fora Temer”? E o silêncio de Lula?

Por que parecem se tornar amigos de repente, mesmo que seja nas sombras dos bastidores, governo e oposição, como no processo contra Cristo, toda a velha guarda dos principais partidos, junto com o poder econômico e com os outros poderes fáticos? Parecem unidos num abraço para evitar que em 2018 possa surgir alguma novidade nas urnas que quebre o poder cristalizado da velha política desgastada e acima de tudo que possa não comungar desta anistia geral aos corruptos e não esteja disposta a terminar a Lava Jato.

Confesso que estamos diante de um novo surrealismo do processo kafkiano, no qual não se sabe onde está o culpado ou o inocente nem o que significam as palavras esquerda e direita, que mais parecem uma noz oca.

E se há algo de absurdo e de labiríntico, em que a política se envolve em si mesmo e nos obriga a apelar à pureza da arte e da literatura para desentranhá-la como um novelo embaraçado, é o divórcio entre a rua e o palácio, entre as pessoas e os políticos, como ficou evidenciado na longa, sombria e surrealista tarde do kafkiano processo contra Temer.