segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Charge O Tempo 30/10/2017

Morte da esperança

Quando Esperança morreu, passamos todos a julgar. O sonho em que se perdeu, parece ser tudo o que conseguimos enxergar. No desvario seu, Esperança errou o lugar. Nasceu Maria Esperança. Veio da Espanha para o Rio visitar. Maria Esperança, turista espanhola, já não é mais.

Uma semana depois, quase não lembramos dela. Sua memória escorregou das manchetes. Foi para o canto da página. E daí para a injustiça do esquecimento. Sua lembrança, e tudo o que poderíamos ter aprendido ao menos para dar sentido ao seu sacrifício já foi atropelado por outras, novas, e repetitivas notícias.

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No Brasil, nem o novo é novidade. A gente se acostumou a recontar as tragédias do dia, esquecendo, desprezando e substituindo as de ontem por outras, muitas vezes iguais e parecidas, mas sempre graves de desumanas.

A verdade é que não haveria sentido em dar destaque a cada morte violenta no país. Ou melhor, faria sentido, mas talvez não fosse possível. No Brasil se mata por tudo ou qualquer coisa. Ou mesmo por nada.

Das 50 cidades mais violentas do planeta, 21 são brasileiras. São 60.000 homicídios por ano. 7 7 por hora. A maior parte das vítimas permanece anônima, soterrada pelos números. Fazendo sem notar a travessia de pessoa a estatística. Em destino sem qualquer distinção, condenado a ser um número em estudos, obscuros ou não, dormitando em gavetas.

Maria Esperança até mereceu atenção especial. Era turista, talvez a única coisa que a separe de todas as outras vítimas que acostumamos a aceitar sem nem mesmo lhes dedicar a atenção que merecem.

Maria Esperança se foi. Deixou para trás, fama efêmera em um local distante de casa, tão acostumado com selvageria que não é mais capaz de reconhecer no espelho a responsabilidade pelo caos.

Passados alguns dias, a memória de sua morte já se vai. Voltamos a rotina de conviver com a morte. O absurdo virou o normal. E se apagam outras Marias, ou Joãos, ou Pedros, ou Anas, ou Claras, e todos os outros nomes que já nem nos importamos de lembrar. Que não tem distinção. Não se chamam Esperança. Porque esperança, não há mais.

O direito ao delírio

Nos últimos anos de vida política em Brasília, disse a amigos que queria incluir uma nova bandeira entre as lutas cotidianas: o direito ao delírio. Sabiam que a palavra delírio não designava alteração da consciência, produzida por drogas. Ainda assim, não entendiam bem. Minha referência eram as alucinações que épocas, partidos, grupos e indivíduos cultivam sobre si próprios e, na maioria dos casos, são dissipadas pelo curso dos fatos.

Agora, posso voltar ao tema e avançar um pouco na explicação sucinta daquele momento. Pressinto que o próprio país caminha, depois de tantos embates, para uma fase que chamo de pós ideológica, consciente da precariedade do termo.

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As duas correntes que as pesquisas indicam como as preferidas, no momento, são as que travam um debate ideológico. Minha própria ideia de que se caminha para uma fase pós ideológica também é uma dessas ilusões que precisam ser testadas na prática. O problema não é ter ilusões, mas sim buscar a maior proximidade com os fatos. Tanto o marxismo, de certa forma herdeiro do iluminismo, como os liberais conservadores partem do que pode ser um erro fundamental.

Não me interessam aqui as explosões radicais, as brigas cotidianas em si próprias. Mas sim o nobre fundamento sobre a qual estão apoiados os contendores. Ambos os lados procuram, através do diálogo e dos confrontos, um consenso sobre a melhor maneira de viver bem. Nesse sentido, perseguem uma ilusão inalcançável. Nas sociedades complexas e diversificadas, o consenso não existe, nem está no horizonte. No seu lugar, é preciso introduzir a ideia de convivência pacífica, o que alguns autores chamam também de modus vivendi.

Encontrar o modus vivendi entre tantas concepções antagônicas é muito difícil porque os conflitos prosseguem, envolvem as instituições, explodem desejos contraditórias por liberdade.

Tanto os herdeiros do iluminismo que trabalham com a hipótese de um consenso racional sobre a melhor vida, como os liberais que acreditam em preservar os valores tradicionais, tendem ao fundamentalismo, sobretudo quando entram em choque.

Assim como a existência das ilusões não quer dizer que a realidade inexista, a busca do modus vivendi não significa um relativismo amoral. É apenas uma constatação que, se aceita, pode reorientar a energia não apenas para o confronto, mas para hipóteses de acordo em temas de interesse mútuo, sobretudo os de reconstrução nacional.

Para o marxismo, talvez isso não seja um problema pois parte do princípio de ter uma saída para os problemas sociais, uma forma única de ver o mundo, uma vontade de convencer que o leva a uma ação missionária.

Para o liberalismo, tornar-se fundamentalista, no entanto, é contradizer algumas de suas principais correntes teóricas. Isso aparece, claramente, nos debates que antecedem as guerras dedicadas a implantar a democracia em países distantes, com história e costumes diferentes. Será que funcionam?

Ao longo desses anos, hesitei um pouco em lançar mão da ideia da liberdade de delirar. Não pelo fato de levar pancadas dos dois lados, pois considero isso parte do jogo. A ideia de que é possível estabelecer uma hegemonia no campo cultural foi, na verdade um dos estopins do debate. Ela é ingênua e inadequada às instituições flexíveis, baseadas na pluralidade.

Mesmo os que não conhecem Antonio Gramsci ou se importam com suas teorias percebem que a ideia de hegemonia significa a neutralização de outras correntes, um domínio amplo e detalhado do espaço cultural, uma negação do próprio conceito de cultura.

Não é possível clamar por tolerância e sonhar com a hegemonia. A tolerância é moldada precisamente na aceitação da pluralidade. Afirmar isto, vale também acusações de proteger o status quo, eternizar o capitalismo, bloquear mudanças.

Isso revela também uma outra divergência sobre a ação política. Não há na realidade salvação nem salvadores. Há apenas soluções provisórias para alguns problemas recorrentes, até mesmo a admissão de que alguns não serão resolvidos a curto prazo.

Na casa de Câmara Cascudo, li uma frase interessante na parede: o Brasil não tem problemas, mas sim soluções adiadas. Uma coisa é tentar viabilizar algumas dessas soluções adiadas. Não é isso que costuma aparecer nas eleições.

Muitos candidatos dizem que trarão consigo um projeto nacional. Isto dá a impressão de que o país é uma folha em branco e será esculpido para as próximas gerações. Não é bem assim, embora seja legítimo o delírio de moldar um país por muitas décadas. Ainda não descobri se os principais partidos que passaram pelo poder usaram a expressão com o objetivo de plasmar um novo país ou apenas para racionalizar seu desejo de ficar muitos anos no governo. Os fatos apontam para esta última hipótese.

Quanto mais se acredita no sonho de um consenso racional, mais escasseia a tolerância. O delírio de um, modus vivendi, acho eu, é mais próximo de nossa realidade diversa.

Gente fora do mapa

Photo

Filosofia da construção

Todo político sem causa é um corrupto em potencial: usa o poder para enriquecer ou para ficar no poder. Por isso, a escassez de bons filósofos é tão grave quanto o excesso de maus políticos.

Até recentemente, havia filosofias que empolgavam os debates políticos: capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, oferecendo bases filosóficas que justifiquem as causas das lutas dos políticos.

Com a globalização, robotização, comunicação instantânea, crise ecológica, pobreza persistente, desigualdade crescente, migração em massa, fracasso do socialismo e injustiças do capitalismo, essas filosofias ficaram ultrapassadas, sem bandeiras claras no horizonte filosófico e político.

Neste vazio de propostas, surgem três alternativas possíveis para orientar o comportamento político. A “filosofia do conformismo”, justificando aqueles que assistem sem reação nem alternativa à marcha da História em direção à modernidade técnica descontrolada, aceitando o progresso global provocar desemprego estrutural, separar as pessoas por “mediterrâneos invisíveis”, muros e cercas, desequilibrar a ecologia, assistindo à generalização das drogas e da violência, crianças sem futuro. Por esta filosofia, o caminho seguido nas últimas décadas é inexorável e não caberia à política controlar o rumo social.

A “filosofia da resistência” é praticada por aqueles que não aceitam a marcha do avanço tecnológico, mas não buscam propostas alternativas: limitam-se à luta para impedir o progresso técnico e fechar as fronteiras nacionais; defendem direitos adquiridos no passado, sem buscar entender quais destes direitos ficaram obsoletos, quais amarram o futuro, e que novos direitos precisam ser conquistados.

A “filosofia da construção” aceita o progresso em marcha, mas não se acomoda aos desastres sociais e ecológicos que ele provoca. Comemora o avanço técnico e a globalização, mas ao mesmo tempo busca definir regras para manter o equilíbrio ecológico, salvaguardar as diversidades, inclusive nacionais, educar as novas gerações para um futuro com emprego reduzido e proteger os que ficam desempregados, mas com tempo livre bem ocupado e com renda mínima assegurada.

Tenta propor um progresso que respeite a natureza, substitua o PIB pelo bem-estar, promova atividades culturais, seja responsável com as finanças públicas. Que estabeleça um Piso Social que assegure a todos o atendimento dos bens e serviços essenciais e também um Teto Ecológico acima do qual ninguém poderá consumir.

A formulação desta “filosofia da construção” é um desafio para aqueles que desejam fazer política com causa, sem ignorar nem naufragar nas vertiginosas transformações que ocorrem no mundo contemporâneo.

Data venia, excelências

Instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), que são parte dos pilares do estado democrático de direito, têm por obrigação zelar por sua credibilidade. Quem está lá na condição de ministro tem mais do que a função de magistrado. Tem uma missão, que é a de zelar pelo equilíbrio entre os Poderes, interpretando, com base na Constituição, qual é a função de cada um numa sociedade democrática, de forma que todos sigam harmônicos e independentes.

Se o STF perder a credibilidade, com ela vai junto a última esperança do injustiçado que busca Justiça, das minorias que brigam pelo direito de se fazer ouvir, do cidadão de bem que deseja contribuir para o crescimento do País.

Os 11 ministros que estão lá foram escolhidos entre brasileiros natos de reputação ilibada e de notório saber jurídico para, numa espécie de função sacerdotal, com toga e tudo, zelar para que o País seja mais justo, para que as desigualdades sejam menores, para que os privilégios desapareçam.

Conquistar credibilidade, todo mundo sabe que é muito difícil. Perdê-la, é fácil. Basta uma atitude errada aos olhos da sociedade para que isso ocorra.

Veja-se o exemplo do Congresso, dos partidos políticos, dos governantes. Tanto aprontaram, e ainda aprontam, que a última pesquisa da Ipsos sobre a credibilidade deles mostra que 93% da sociedade não confia nos políticos em geral. A situação é tão ruim que hoje alguns deputados e senadores, quando viajam, escondem a medalhinha que usam no paletó e os identifica como integrantes do Congresso. Aquilo que era para ser motivo de orgulho virou motivo de vergonha. Alguns, de cara mais conhecida, são identificados em aeroportos, restaurantes, museus, e passam por situação vexatória, tal a ira do público.

Nos últimos dias o STF protagonizou fatos e cenas que podem comprometer muito a imagem da instituição. Uma delas de puro privilégio em causa própria. A Corte transferiu o feriado do dia do servidor público, comemorado todos os dias 28 de outubro, hoje, para o dia 3, logo depois do feriado do Dia de Finados, 2. Como no dia 1.º é feriado no Judiciário, a folga no Supremo, que será acompanhada também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), irá da quarta-feira que vem ao domingo. Umas miniférias.

Já na quinta-feira, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso tiveram um bate-boca em público daqueles de dar vergonha. Entre outras coisas, depois de muita provocação, Barroso disse que Gilmar é leniente com os crimes de colarinho-branco, além de não trabalhar com a verdade. Gilmar respondeu que Barroso concedeu habeas corpus para José Dirceu e que foi advogado de criminosos internacionais, numa referência ao fato de o colega ter defendido Cesare Battisti, condenado a prisão perpétua na Itália sob acusação de ter participado do assassinato de pelo menos quatro pessoas quando militava num grupo esquerdista que tentava derrubar o governo democrático pelas armas.

Indagado sobre o que achou da briga, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou que tais episódios denigrem a imagem do STF e mancham a sua credibilidade. Mas não se esqueceu de lembrar que em relação a Gilmar Mendes tem “inimizade capital”.

Debates acalorados sobre o entendimento de determinada doutrina do Direito são corriqueiros em qualquer espaço que reúna duas ou mais pessoas ligadas ao Judiciário. Da forma como ocorreram não são normais, porque não trataram do entendimento a respeito de uma norma, mas de acusações pessoais.

Uma coisa é dizer que não dá para levar desaforo para casa. Outra é ter um comportamento que compromete a credibilidade da instituição a que serve, só para repetir, o último refúgio do cidadão.

Mordendo o alheio

(Esse tipo de gente) está sempre abocanhando o seu. E você nunca se livra dele, Aonde você vai, lá está ele à sua espera, à sua cata. Arranca-lhe a alma para viver folgado. E continua coberto de razão
Tchinguiz Aitmátov, "O navio branco"

Temer e os áulicos vivem ilusão da 'normalidade'

Segundo a superstição de Michel Temer, revelada a aliados que lhe telefonaram para saber como estava sua saúde, o governo inaugura nesta semana uma nova fase. Um ciclo de “normalidade” administrativa. A percepção de Temer é compartilhada pelos áulicos do Planalto.

Falando do leito do Hospital Sírio Libanês, Temer informou que voltará ao batente na quarta-feira. “Ele está muito animado”, disse ao blog um parlamentar que conversou com o paciente. Tudo faz crer que o congelamento das denúncias da Procuradoria fez com que o presidente voltasse a acalentar o pior tipo de ilusão: a ilusão de que preside.


Na área econômica, a prioridade de Temer é colocar em pé a reforma da Previdência. O mandarim da Câmara, Rodrigo Maia, declarou que, numa escala de zero a 10, a chance de ser aprovada uma versão lipoaspirada da mexida previdenciária oscila entre 2 e 3. O comandante do Senado, Eunício Oliveira, afirmou que não é a melhor hora para tratar do tema.

Na área político-penal, Temer terá de tourear o inquérito em que figura como suspeito de beneficiar uma empresa no Porto de Santos. E não pode descuidar dos humores de Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala de R$ 500 mil, e de Geddel Vieira Lima, o amigo do cafofo com R$ 51 milhões. Loures arrasta uma tornozeleira eletrônica em casa. Geddel puxa cana na Papuda. Por ora, guardam obsequioso silêncio.

Numa conjuntura assim, tão sujeita a delações e trovoadas, se Temer consegue manter a cabeça no lugar enquanto tanta gente perde a sua, provavelmente já não sabe onde colocou a noção do perigo. Ou está exercitando o seu cinismo.

Paisagem brasileira

Archimedes Dutra, Paisagem rural, 1939, osm, 22 x 26 cm
Paisagem rural (1939), Archimedes Dutra

O mendigo disse: 'Não tenha vergonha de olhar para mim'

O mendigo disse: "Não tenha vergonha de olhar para mim". Estava falando com uma senhora muito elegante cujo cão tinha parado para fazer suas necessidades perto do indigente, que estava sentado no chão, sobre um papelão sujo, com as costas apoiada na parede do McDonald's do centro de Madri. A senhora, que não queria puxar o cão, olhava de soslaio para o pobre: o copo de plástico com duas ou três moedas, sua garrafa de água, seu guarda-chuva, sua sacola de supermercado cheia de frutas, os pés descalços e pretos pela sujeira, sua mochila rasgada... Foi quando o homem se dirigiu a ela para dizer que não precisava ter vergonha de olhar, pois ele podia suportar.

A senhora se agachou para recolher o cocô do cachorro e ao se levantar estava chorando. Você pode suportar, disse, mas eu não. De forma incongruente, disse que era professora de história. O mendigo tirou de sua mochila, para mostrar uma História do Mundo Contemporâneo: um velho livro de bolso com as folhas inchadas, como os tornozelos de alguém que sofre de hidropisia. É tudo que li na minha vida, explicou, ler é muito instrutivo. Muito, concordou ela dando um nó no saco de cocô do animal, enquanto engolia as lágrimas. Se você quiser, ofereceu, amanhã trago outro livro para você. Traga-me um sobre o mundo antigo, para comparar, disse o homem. A mulher andou oito ou nove passos e voltou para deixar algumas moedas. Não precisava ter se incomodado, disse ele. Não é nenhum incômodo, assegurou ela. Deixe o cocô do cachorro, ele sugeriu então, também tenho que me desfazer do meu. Ela, depois de resistir um pouco, entregou a ele. Depois começou a caminhar, puxando o cão, que não queria se afastar da sua merda.

Onisciência

Seria uma heresia comparar Deus com a sociedade? Acho que não, e como não estamos na época da Inquisição nem de Torquemada podemos fazer tais ilações e delírios.

O filósofo Luiz Felipe Pondé diz que a narrativa cósmica é associada a práticas cotidianas. E que a narrativa dá sentido às práticas e as práticas dão corpo à narrativa. Seria essa a inter-relação entre Deus e a sociedade?

Procuro ver, sem discordar, por outro ângulo. Deus é onisciente, onipresente e onipotente. A sociedade também poderia ser. Guardada as devidas proporções. A sociedade é onipresente. Está em todos os lugares, como Deus. Ela, a sociedade, também é onipotente: tudo pode. Inclusive fazer revoluções, derrubar ou eleger governos, influenciar políticas públicas, mostrar caminhos e até mesmo se autodestruir. A sociedade pode fazer o seu apocalipse como construir o paraíso.

A combinação de onipresença e de onipotência faz da sociedade, potencialmente, o ente mais poderoso de um país.


Não é esse, porém, o caso brasileiro, pois a nossa sociedade não se utiliza adequadamente de sua onipresença nem de sua onipotência. Pelo fato de que não é onisciente. Pouco ou nada sabe sobre como funcionam a máquina da política e os meandros do governo. Em não sendo onisciente, pouco faz com sua onipresença e sua onipotência.

E como tal fato ocorre no Brasil?

A nossa sociedade relaciona-se de forma interesseira com o governo. É uma relação em que predominam os interesses sobre os princípios. Por quê? Porque somos uma sociedade ignorante, não apenas no que se refere à educação básica e formal, mas, sobretudo, no que tange à educação cidadã. Aí reside nossa imensa ignorância. Não sabemos de nada e não conseguimos romper o véu de opacidade que o Estado impõe à sociedade.

Em sendo assim, de nada vale sermos uma sociedade onipresente e onipotente, já que não sabemos para onde ir e os faróis que tentam nos guiar estão contaminados por agendas de poder e de interesse.

Sabemos que a sociedade jamais será onisciente. Mas poderá ser menos ignorante e mais reflexiva. Sobre tudo desconfiando dos que se vestem de bondade e de boas intenções. Pois o mau muitas vezes se disfarça de bom, de politicamente correto, de libertário. Lute pela sabedoria e pela desconfiança. Pois, como disse Santo Agostinho, mais vale ter dúvidas sobre temas complexos do que certezas de difícil comprovação.

Murillo de Aragão

Dois importantes pronunciamentos

 Na semana passada e na anterior tivemos dois importantes pronunciamentos: o de Xi Jinping, primeiro-ministro chinês, e o de Tiririca, deputado federal brasileiro. A importância do primeiro decorreu mais do peso econômico e político da China no mundo que de seu conteúdo. Afirmo isso porque a substância do pronunciamento é bem conhecida.

Em sua fala de três horas e meia, o mandatário chinês reafirmou que a China é hoje uma superpotência econômica e política e fadada a um importante protagonismo no cenário mundial. E não precisou bater no peito para indicar que ele, como líder do Partido Comunista, está próximo de atingir uma estatura política comparável à de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.

Mantidas as devidas proporções, Tiririca também disse uma coisa relevantíssima, embora desconhecida da maioria dos brasileiros. Anunciando que não pretende se recandidatar no ano que vem, ele afirmou: “Vim para cá pensando em aprovar projetos, mas a coisa aqui é muito complicada”. Para bom entendedor, pingo é letra.

A referência principal de sua curta sentença é, sem dúvida, o poder absurdo que as Mesas do Senado e da Câmara detêm. Nenhum senador ou deputado consegue aprovar projeto algum se elas não quiserem, só com uma paciência de Jó e puxando bastante o saco dos respectivos presidentes.

Esse mecanismo explica um dos maiores paradoxos do Legislativo, dois traços perversos que qualquer cidadão percebe a olho nu: de um lado, o governismo sem-vergonha que reduz as duas Casas a uma quase total impotência, fraudando a estipulação constitucional do equilíbrio de Poderes e desestimulando carreiras políticas sérias; do outro, revoltas inesperadas, surtos de rebeldia, notadamente no chamado “baixo clero”, cujo objetivo é invariavelmente aumentar o custo do apoio às Mesas e, por via de consequência, ao Executivo. Há quem singelamente acredite que a debilidade e a mediocridade do Legislativo sejam como uma danse sur place, um ponto de equilíbrio muito ruim, mas estático. Ledo engano.



O que se passa no Brasil, mercê do equivocado conjunto de engrenagens que compõe nosso sistema político, é um paulatino deslocamento para um equilíbrio cada vez pior. Uma das faces mais visíveis desse processo é a incapacidade do Legislativo, evidente já há muitos anos, de recrutar bons candidatos. Por que cargas d’água uma pessoa apta a desempenhar cá fora um papel de relevo vai se meter numa máquina de moer carne como aquela?

Tiririca disse que não vai se recandidatar, e eu acredito nele. Tem toda a razão: entre ser figurativo ou de verdade, é melhor sê-lo de verdade, cá fora. Circo por circo, os de cá são mais engraçados.

Claro, o deslocamento do equilíbrio para pior deve-se à operação de outros mecanismos, não só ao poder das Mesas. A proliferação desordenada de partidos carentes de identidade é um deles. É mais ou menos assim que a coisa se passa: um aventureiro ou um grupelho qualquer funda um partido e obtém no Tribunal Superior Eleitoral o devido reconhecimento. Só com esse passo ele (aventureiro ou grupelho) já se habilita a participar dos recursos do Fundo Partidário. Se conseguir eleger um punhado de deputados ou senadores, habilitar-se-á a vantagens não menos suculentas: entrará no universo conhecido como “presidencialismo de coalizão”, usando seus votinhos como poder de chantagem para integrar a maioria governista, que cedo ou tarde, no limite, vai precisar deles. A contrapartida do Executivo pode ser em cargos nos ministérios ou nas estatais, mas, em caso de necessidade, há quem a aceite em moeda sonante, como ocorreu abundantemente no “mensalão” arquitetado pelo ex-presidente Lula.

Claro, a proliferação de agremiações acirra a disputa na arena eleitoral. Em cada Estado, um número cada vez maior de pretendentes começa a dar cotoveladas, a azeitar o caixa 2 e a clamar por “chances” proporcionais à contribuição que haverão de prestar à jovem democracia brasileira. Foi assim que, pela Constituição de 1988, deixamos para trás aquele saudável teto de 400 e poucos deputados e passamos aos 513 que integram atualmente uma Câmara proporcionalmente muito maior que a dos Estados Unidos!

Sejamos francos: para que tantos deputados e senadores? Por que não estabelecemos um mínimo de seis (em vez de oito) deputados e dois (em vez de três) senadores por Estado?

Mas seria ainda o caso de rir, e não de chorar, se nossos parlamentares fossem totalmente cínicos, defendendo tais disparates tão somente como uma engrenagem apta a acomodar seus interesses. O problema é que muitos não são cínicos. Muitos há para os quais esses mecanismos são o alfa e o ômega da sabedoria política, a estrada real que levará nosso país ao que chamam de “verdadeira democracia”. Para esses, quanto mais assentos no Legislativo e quanto mais partidos, melhor. Ora, se assim é, por que não uma Câmara com cinco ou dez mil parlamentares, cada um com seu próprio partido? Os que assim pensam não percebem que um corpo superdimensionado é uma forma de debilitar, não de fortalecer o Legislativo, uma forma de desnaturá-lo e castrá-lo, transformando-o num apêndice (é certo que barulhento!) do Executivo.

No Paper Federalista n.º 51, um dos estudos que elaborou como contribuição à Constituição americana, James Madison escreveu: “Se a assembleia de Atenas tivesse dez mil membros, com certeza deveríamos vê-la como uma horda de arruaceiros, não como um corpo deliberativo sério”. Eu só faria um pequeno acréscimo: uma horda formada por um baixo clero de uns nove mil e novecentos, precariamente controlados por uma elite de talvez cem.
Bolívar Lamounier