sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

'A grande tragédia brasileira é que o Estado não tem resposta para a violência'

Desde meados de 2016, as duas maiores facções criminosas do Brasil estão rompidas. A disputa entre a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC)e o Comando Vermelho (CV) está presente nos conflitos que extrapolaram as cadeias e atingem a população de Manaus, Boa Vista, Porto Velho, Natal e o Rio de Janeiro. Recentemente, o secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária do Goiás, Ricardo Balestreri, admitiu que a disputa entre as facções foi o principal motivo da rebelião que deixou nove mortos e 14 feridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia logo no primeiro dia do ano. Semanas depois, no final de janeiro, o Ceará viveu a maior chacina de sua história, com o assassinato de 14 pessoas no bairro de Cajazeiras, periferia de Fortaleza. A imprensa noticiou que os atiradores pertenciam à facção GDE (Guardiões do Estado), aliados locais do PCC, e que as vítimas participavam de um forró promovido pelo CV. A disputa do PCC pelo Estado — em que o CV era predominante — abertamente em áudios divulgados pelo UOL de um grupo de whatsapp que, segundo o portal, é de membros do PCC cearense.

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Para Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência(Editora Saraiva), o mais preocupante é a incapacidade do Estado em se antecipar à violência gestada nas prisões. “Toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos”, analisa. Ela vê a disputa pelo domínio nas prisões como o principal motivo do rompimento entre os maiores grupos criminosos do país, diz não haver soluções de curto prazo para o conflito entre as facções e critica a política de guerra às drogas. “Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização”, afirma.

Quais são os principais reflexos do rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho nas ruas e nas cadeias passados quase dois anos?

Acho que uma das questões mais centrais quando se trata a respeito dessa questão é a profunda incapacidade do Estado de garantir a segurança dos presos e das populações, sobretudo aquelas que vivem em territórios e regiões controladas por esses grupos. A gente percebe que a disseminação das facções, como esses grupos são chamados, traz um profundo impacto sobre a questão da violência de uma forma geral. Muitas vezes quando se anunciam programas que visam reduzir os homicídios e há uma queda na taxa de homicídios, por exemplo, como aconteceu no Ceará há alguns anos, essa queda muitas vezes está ligada à composição entre esses grupos, a alianças, acordos que eles fazem entre si. Como você teve o anúncio dos números do Ceará Pacífico [programa de redução da violência lançado em 2015 pelo governador Camilo Santana], por exemplo, você vê como essas políticas públicas são frágeis diante das dinâmicas das facções. Uma análise que para mim fica bastante evidente, não só diante desses acontecimentos atuais, mas pegando de uma perspectiva mais de longo prazo e cotejando isso tudo com a questão de política pública, você vê que na verdade não há política pública. Então quando a gente se vê numa situação em que os grupos deixam de conviver entre si e isso se rompe, o Estado, como não tem política pública, é incapaz de prevenir situações de extrema violência como as que estamos vendo agora no Ceará, no Rio Grande do Norte e em vários outros estados brasileiros.

Do início do ano para cá, já tivemos uma rebelião sangrenta no Goiás e, segundo a imprensa, a maior chacina da história do estado do Ceará. Ambos os episódios foram associados ao PCC e poderiam ser reflexos do rompimento com o CV. Isso sinaliza um aumento dos conflitos em nível regional por conta desse rompimento entre as facções?

Acho difícil avaliar se há uma escalada de crescimento nos conflitos. O PCC e o Comando Vermelho são dois grupos que têm uma maior presença nacional, principalmente o PCC, mas o CV também. Quando, há dois anos atrás, eles anunciaram uma ruptura, era claro que isso apontava para uma perspectiva de ter conflitos graves justamente por serem grupos de presença nacional e até então, desde a fundação do PCC – quando o Comando Vermelho já existia – eles conviviam entre si. Os presos de ambos os grupos ficavam nas mesmas penitenciárias, nas localidades onde um ou outro grupo tinha maior presença, e essa convivência era muitas vezes de colaboração, de parcerias comerciais. Quando há essa ruptura anunciada lá em junho de 2016, houve essa perspectiva de uma grande desestabilização entre os grupos criminosos dentro e fora das prisões. Os dois – CV e PCC – têm presença em quase todos os estados. E a gente vê, de 2016 para cá, que foram muitos momentos, picos de extrema violência e desestabilização. Tivemos episódios em Roraima, no Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, enfim, vários estados viveram picos e crises de segurança e depois estabilizaram. Essa estabilização eu entendo que é fruto de um lado da própria ação do Estado, no sentido de apagar incêndios, e de outro lado é fruto de uma certa acomodação dos próprios grupos, afinal ninguém aguenta ficar se matando o tempo todo. Depois, ou estoura uma outra crise no mesmo local ou, como tem ocorrido de 2016 para cá, a crise e o pico de violência migram para outra localidade. Infelizmente, no Brasil, a gente não tem uma política de segurança pública e nem uma política prisional, os estados só se mexem e anunciam alguma coisa em situações de crise como essas que estamos assistindo. No Ceará, com essa crise agora, monta-se uma força-tarefa, assim como aconteceu em Alcaçuz [penitenciária estadual no Rio Grande do Norte, palco de uma rebelião que deixou 26 mortes]. Aquilo momentaneamente estabiliza, mas na verdade você não está mudando de uma maneira estrutural. Você momentaneamente segura essa tensão. Quando essas coisas acontecem, os holofotes se viram para o estados e algumas medidas emergenciais são tomadas. Os outros estados vivem situações semelhantes, mas enquanto a crise não explode, nada é feito. O que fica de tudo isso, em uma análise mais global, é que os estados não têm nenhuma capacidade de prevenir essa situação de violência – toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos. Essa é a grande tragédia brasileira. O Estado não tem respostas para dar a esse cenário. As respostas dadas: policiamento militarizado e mais prisões – essas são a raiz dos problemas e o Estado tem mostrado que não tem respostas.

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